quinta-feira, 1 de junho de 2023

No café


No café 


       Ao olhar o relógio me apressei a esquentar o pão de queijo e preparar o capuccino, em minutos ela chegaria e como toda quarta feira,  hoje era dia do pão de queijo recheado. As segundas e sextas era pão de queijo simples simplesmente. Toda semana, tudo igual, ela chegava de mansinho e pedia um cappuccino e um pão de queijo ás segundas e sextas, um pão de queijo recheado e um capuccino às quartas. Eu a observava, a delicadeza com que me agradecia, sorrindo  com o canto da boca e abaixando a cabeça quando se despedia, a calma com que virava a colherinha na xícara para misturar o chantilly e o olhar perdido quando terminava de sorver o café gole por gole.             Durante todo ano ela esteve aqui ás segundas, quartas e sextas e como hoje era quarta,  em questão de minutos a porta se abriria, o sininho tocaria e ela então faria  seu pedido habitual.  Desde janeiro acontecia assim e já estávamos bem pertinho do natal, mas nem as férias de julho ou a chegada de dezembro pareciam alterar essa rotina que já era minha também. Gostava de esperar por ela,de antever seus gestos e espiar a capa do livro que ela trazia  . Interessante como me apeguei à aquela  figura, sempre com um vestido estampadinho, um tênis branco e uma jaqueta jeans . Na bolsa de couro não muito grande sempre um livro, ás vezes ela abria o livro ali na mesa e entre um gole e outro anotava alguma coisa, ás vezes ela só punha o livro sobre a mesa e ficava olhando, será que ela era professora? Diretora da escola ali da esquina ? Não, muito jovem ! Será que ela era uma escritora ? Quando tirava os óculos para limpar as lentes com uma flanelinha  que trazia na bolsa eu podia ver seus olhos lá no fundo, é engraçado isso, a gente acostuma com a pessoa de óculos e quando ela está sem,  parece que falta alguma coisa. Sua presença ali semanalmente me dava  uma sensação de segurança, de que aconteça  o que acontecer tudo sempre estará como sempre foi . Sentava sempre na mesma mesa, nunca calhou daquela mesa estar ocupada, devia ser por causa do horário, meio da tarde é sempre mais tranquilo do que fim de expediente quando as lojas fecham e a pessoas entram famintas em busca de um conforto pra iniciarem sua volta para casa .

      Nesses meses todos ela sempre chegou sozinha, apenas uma vez um rapaz de cabelo encaracolado chegou depois e se sentou com ela que parecia estar esperando, nesse dia, pude  observar que ela sorriu muito e ele também, falaram baixinho, suas mãos se tocaram e nada além disso, na hora de pagar a conta ela se apressou em acertar e ele disse que a próxima seria dele,  mas ainda não teve a próxima . 

    Olhei novamente o relógio e percebi que já estava adiantada a hora e o café começou a encher com as pessoas de sempre e aquelas de nunca, que uma vez ou outra apareciam como fossem flores do cerrado que só duram um dia. Ué !! Hoje ela não veio,  pensei ao fechar a loja e caminhar até o ponto de ônibus que chegou em seguida, amanhã também não virá, não é dia , mas sexta com certeza. 

    E como toda sexta ela adentraria o café pro pão de queijo simples com capuccino, e então mexeria delicadamente a colherinha na xícara e colocaria o livro da semana sobre a mesa. Teve um dia que ela esqueceu o livro e eu guardei, era de uma escritora jovem, um livro de capa bonita cujo nome eu esqueci , guardei bem  guardadinho e quando ela voltou eu já fui colocando o livro em cima da mesa  antes  mesmo do café com Pão de queijo . Você guardou pra mim, ela falou enquanto sorria com o canto da boca . Me afeiçoei a ela sem mesmo conhecê-la, ás vezes é até mais fácil

assim desconhecendo, a afeição fica mais pura, mais nossa. Nem seu nome eu sabia pois quando ela pegava o cartão pra pagar a conta por aproximação,  não dava pra ler o nome gravado na parte da frente . Um dia quando ela saiu e me agradeceu por lembrar do livro sobre a mesa ela perguntou meu nome e eu falei :Jéssica .Podia ter perguntado o dela na sequência mas não perguntei e ela foi indo embora com seu tênis branco e a jaqueta jeans por cima do vestido .Durante dias eu a esperei e ela não voltou, meses se passaram e eu continuava a pensar se poderia ter acontecido alguma coisa com o café ou o pão de queijo. Ela nunca mais voltou mas eu nunca desisti de tentar adivinhar porque ela sumiu assim,  tanto que nos dias seguintes ao seu sumiço  eu me peguei olhando  pra dentro das lojas próximas pra ver se a encontrava,  mas nada,  nada .Com o tempo fui desistindo e só mantive a imagem daquele sorriso discreto de quem sorri sem abrir os lábios e da delicadeza da colherinha  batendo na xícara .

    Muitos anos  depois num dezembro bem quente o café já havia sido vendido e transformado numa loja de meias . Eu  retornava apressada para aquela rua cheia de pacotes e compras  para o natal,  enquanto esperava um ônibus no ponto que durante tantos anos fora o meu,  quando alguém me sorriu e puxou meu braço :Jessica ??? Era ela.



M Ísis

domingo, 12 de março de 2023

Amanhã

 


   Começamos pelos sapatos, seria mais fácil, nem todas calcávamos o mesmo número de modo que os que Adélia gostasse poderia ficar com ela . Sugeri que fizéssemos um bazar beneficente com tudo o que restasse mas Antonia achou que daria muito trabalho e o melhor seria doar mesmo, gente não faltaria , da paróquia da igreja aos funcionários da casa todos ficariam agradecidos. Agradecidos … agradecidas deveríamos ser nós que pudemos contar com Paula, Jessica e Fabíola nesses últimos anos, não fossem elas Antonia não daria conta . 

   Passamos às roupas, o dia estava rendendo. Adélia sugeriu que fechássemos a janela já que o vento frio de um inverno fora de época parecia congelar o quarto . Não !!! Não fecha a janela não que eu me sinto angustiada, reclamei . Seria a janela ? As roupas  nos traziam muita memória, muito mais que os sapatos que nos passaram batido . A festa de formatura da Celeste, a primeira comunhão do Angelo  ou o batizado do Leo,parecia vê-la ali elegante e distinta como sempre foi . Respirar fundo pode ser bom nesses momentos . Ela adorava esse Robe azul, estava sempre com ele nas chamadas de vídeo eu disse tentando aplacar minhas memórias . Ela preferia o amarelo disse Antonia . Antonia sabia, sabia mais que todas nós, foi a única que permaneceu ali quando todas tomamos nosso rumo . Nunca nos perguntamos se foi por escolha ou por inércia, o fato é que sempre dissemos que ela era a preferida . Não casou, não teve filhos mas foi uma tia muito amada e querida por todos além de uma professora fantástica para seus alunos de música que a tinham em alta conta . Uma chamada de vídeo me distraiu, era Mércia dos EUA, queria saber como estávamos indo e o nosso progresso nessa operação . Mércia não podia estar conosco, veio rapidinho para um último adeus e mal participou do funeral , compromissos inadiáveis a esperavam . Era sempre assim . 

   O piano é meu ! Gritei  quando desci as escadas para receber o correio . Claro, além de ser um presente dado em vida por meu pai hoje o piano era também meu instrumento de trabalho . 

   O dia já terminava e o cansaço parecia nos abater, faltava muita coisa mas poderíamos deixar para amanhã .Sempre haverá um amanhã era o que ela sempre dizia quando nós despedíamos . Sorri .As jóias não seriam problema, minha mãe nunca gostou  muito de joias e as poucas que tinha dividiu em vida entre filhas e netas de acordo com a identificação da presenteada com a peça . Todo mundo estranhou quando o broche de libélula foi para a filha mais moderna da Mércia ,mas a menina compreendeu , minha mãe sempre teve dessas coisas de enxergar além do que a gente via . 

Passamos ás caixas , fotografias, cartas , bilhetes e cartões que nos traziam inúmeras lembranças , tudo guardado, nem um bom

dia vovó escrito num guardanapo lhe escapava, tudo ali em caixas , uma vida de afetos , recados , escritos . Decidimos guardar as fotos e os bilhetes, talvez separar os menos relevantes … o que seria menos relevante ali ? 

   Quando percebemos já era noite alta e a fome bateu . Pode ser pizza pra todo mundo ou alguém tem alguma restrição ? Naquela hora da noite quando percebemos que a fome se agigantava a pizza parecia uma ótima ideia . Sentamos, ninguém ocupou a cabeceira da mesa, aquele lugar permaneceria vazio . Comemos em silêncio e Adélia falou que lavaria os pratos para que pudéssemos encerrar o capítulo fotos e cartas . Encerramos . Fechamos o quarto desanimadas com tudo que faltava ainda e nos despedimos . Amanhã a gente volta . Sempre haverá o amanhã . 


Maria Ísis 

   

segunda-feira, 16 de dezembro de 2019

Dividida em duas partes  
uma cala, outra consente,
uma fala, a outra só sente 
e desmente 
a crença de que ela é uma só . 

domingo, 18 de novembro de 2018

Notas para o poeta do presente :
Mundo insano

O cristão que relevou a tortura,
O poeta que amou as armas,
e acreditou que a violência cura ...

Um professor de fala mansa e riso solto em contraponto,
á ilusão do personagem de um conto ( de terror )

Ah! E um povo que elegeu ...
um opressor ?
De mãos dadas

Embora as vezes me sinta
sei que não estou sozinha ,
embora a tristeza me espante ,
sei que ela não e só minha.
Comigo estão as mães dos diferentes,
dos meninos negros ,
dos meninos índios,
dos que sabem que qualquer maneira de amor vale a pena ,
que qualquer maneira de amor vale amar .
Embora esteja me sentindo sozinha ,
comigo estão os que ontem lutaram por mim,
os órfãos da tortura e da barbarie,
os poetas e cantores que resistiram através da arte,
apesar da dor,
apesar da censura,
apesar do pesar .
Embora me sinta só,
voz solitária e dissonante
em meio aos que bradam certezas e vociferam suas “ditas” verdades,
sei que não estou só ,
junto a mim  os que acreditam ,
nas flores vencendo o canhão ,
no poder da palavra,
da educação ,
Maria Ísis


quarta-feira, 7 de março de 2018

Sabê-lo e não dizê-lo,
Renunciar ao apelo de catalogar, rotular ou nomear
o inominável .
Se permitir apenas sentir,
é no sentir que reside todo saber .

M Ísis 

segunda-feira, 17 de julho de 2017

Sentia-se bela e atraente 
e ainda que não fosse 
sabia,
beleza é uma  questão 
de atitude ...
M isis